RESUMO Um dos filósofos mais importantes da atualidade compara a
geopolítica contemporânea à situação da véspera da Primeira Guerra
Mundial, explica por que discursos autoritários e nacionalistas se
beneficiam das crises da democracia, analisa as semelhanças entre
direita e esquerda e fala sobre sua hipótese comunista.
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Deco Farkas |
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Ilustração de Deco Farkas |
O filósofo, romancista e dramaturgo Alain Badiou, 80, um dos intelectuais mais importantes da França, compara a
atual situação geopolítica à que antecedeu a Primeira Guerra Mundial (1914-18).
Para ele, a eleição de
Donald Trump, nos EUA, é um caso patológico, enquanto o presidente
Vladimir Putin, da Rússia, busca vingança pelo desmonte da
União Soviética e leva seu país ao mesmo papel da Alemanha em 1914.
Badiou chama a atenção para a crise da democracia e para o clima de
desorientação global, que podem favorecer regimes autoritários e
reforçar discursos nacionalistas e populistas –situação que também afeta
a França, onde
Marine Le Pen,
candidata de extrema direita, tem boas chances de ir para o segundo
turno da eleição presidencial. A primeira rodada de votação acontece em
23 de abril.
Conhecido pelos
concorridos seminários
públicos que comanda desde 1966, ele analisa a ideia de que direita e
esquerda são cada vez mais iguais e defende com rara convicção uma nova
hipótese comunista, dissociada das experiências totalitárias do passado.
Em seus livros, reflete sobre o amor, a poesia, a matemática, a
juventude, a política ou as dores e as crises do mundo. Como professor,
orientou o filósofo esloveno
Slavoj iek e
Vladimir Safatle,
que leciona filosofia na USP e é colunista deste jornal. Como
dramaturgo, trabalhou com Antoine Vitez (1952-90) e Christian
Schiaretti, entre outros diretores.
Folha - Qual é a natureza da atual crise da democracia?
Alain Badiou - O regime democrático está em crise por não poder
fazer crer que aceita hipóteses contrárias. O capitalismo se apresenta
como hipótese única depois que a experiência comunista fracassou, e há
uma tendência à ideia de que a representação política pode ser mais ou
menos unificada. Todo mundo diz que é preciso superar a oposição entre
esquerda e direita.
Na França, [o centrista] Emmanuel Macron [ex-ministro da Economia do socialista François Hollande e um dos líderes em
pesquisas de intenção de voto para presidente] se apresenta como conciliador.
Pode ser que caminhemos para um partido único versão capitalista. O
regime parlamentar supunha um tipo de tensão contraditória de políticas,
mesmo que artificial. Havia a necessidade de uma diferença visível
entre direita e esquerda. Hoje, a esquerda eleitoral, excluída a extrema
esquerda, não é muito diferente estrategicamente do que fazem os
demais. Isso cria a hipótese de enfraquecimento crescente do aspecto
legível da democracia.
A democracia como regime apropriado ao desenvolvimento do capitalismo
ordinário está em crise, e disso tudo podem surgir organizações
políticas estritamente dedicadas à gestão do Estado. Organizações um
pouco neutras, ligadas de modo explícito ao grande capital.
Para o senhor, a pluralidade política ou a diferença entre direita e esquerda não passa de ficção.
É uma ficção. Mas só funciona enquanto se acreditar que não é ficção.
Hoje, à força de vermos governos de esquerda fazerem mais ou menos o
mesmo que os de direita, a ficção não se sustenta mais. Por isso
aparecem pessoas que dizem: "Não é preciso ter esquerda e direita, eu
represento as duas, sou ao mesmo tempo pelo rigor econômico e pela
justiça social".
Há forte crescimento de discursos nacionalistas, xenófobos, racistas.
Por que os períodos de crise, como foi o caso nos anos 1930, favorecem a
direita dura, e não a esquerda?
Em crises sistêmicas médias, se os partidos estão habituados à ficção de
que falei, eles deixarão seu lugar àqueles que sempre criticaram essa
ficção. Os partidos fascistas e nacionalistas sempre criticaram a ficção
e sempre disseram que somente eles representavam a vontade popular, a
nação etc.
Eles propuseram ao capitalismo outra doutrina. Nos regimes fascistas, os
capitalistas continuaram à vontade. A ficção do jogo democrático entre
esquerda e direita foi substituída pela ficção da independência nacional
do capital a serviço da grandeza da nação, da raça etc.
O capitalismo é polimorfo. Em períodos de desenvolvimento concorrencial
simples, valem o parlamentarismo e a ficção direita-esquerda. Mas,
quando sua capacidade de fazer redistribuição é diminuída, quando há
menos dinheiro, ele é mais avaro, prioriza os capitalistas e prefere
protocolos de autoridade. É o que se passa hoje.
Em períodos de crise, a ficção direita-esquerda desmorona, e as forças
autoritárias levam a melhor. É preciso que o Estado mantenha a
disciplina. O capitalismo precisa mais do que nunca que a polícia
controle greves, que as pessoas possam trabalhar e que os desempregados
se mantenham tranquilos.
Até hoje, os Estados autoritários não puderam se assumir plenamente como
capitalistas. Eles necessitam de uma ideia intermediária. E a ficção
fascista é a ideia nacional, racial, xenófoba etc. A ideia de que, se
tudo vai mal, não é culpa do capitalismo, mas dos metecos, dos judeus,
dos negros, dos árabes.
Por que é o regime autoritário que vence nesses momentos? Porque ele é
sustentado pelo verdadeiro mestre, pelos dirigentes reais. Eles se
lembram de que, na Comuna de Paris, na Revolução Russa, na China,
grandes crises provocaram vitórias comunistas. Por isso, vão se proteger
apoiando e financiando regimes que podem ser militares ou de partidos
fascistas.
Estamos ameaçados por isso, e tudo vai depender do tamanho da crise. De
qualquer forma, esta crise enfraqueceu muito a ficção direita-esquerda.
No fim das contas, penso que entraremos em um período de redistribuição
geral ideológica e política. Veja o espetáculo da eleição presidencial
francesa.
Qual sua visão sobre a disputa presidencial na França?
Analiso o regime parlamentar como um regime que enquadra quatro orientações, e não duas.
Há as orientações conservadora e reformista, fundamentalmente de acordo
quanto ao essencial, o sistema capitalista como via única etc. Os
conservadores são mais levados a manter a disciplina da tradição, e os
reformistas são mais ligados à ideia da necessidade de certas reformas
sociais. Não há muita diferença entre os dois, e em alguns países eles
governam juntos.
Em cada um dos lados, encontramos polaridades mais contraditórias. A
extrema direita assume abertamente um princípio identitário forte,
nacional ou racial. Na extrema esquerda, há certa ideia de que é preciso
permanecer fora da cumplicidade evidente entre direita e esquerda
tradicionais.
O período de crise aparece quando o jogo central entre forças
conservadoras e reformistas está desregulado, e as alas extremas se
reforçam de forma muito desigual. Por vezes, para o lado da extrema
esquerda, e com mais frequência para o da direita nacionalista.
Analiso as eleições francesas nesse contexto. Nota-se grande crise dos
dois organismos centrais, o partido conservador Os Republicanos e o
Partido Socialista [PS].
Os Republicanos nomearam um candidato de sua ala mais à direita,
François Fillon. O PS tem um candidato da ala mais à esquerda,
Benoît Hamon. O partido propriamente antissistema, a Frente Nacional (FN, de extrema direita), de Marine Le Pen, está em posição de força.
Não se tem ideia do que vai acontecer. O dado atual é o surgimento, no
meio, de uma tentativa interna do centro, mas que diz: "Terminemos com a
ficção, porque não funciona mais; quero ser o representante do bloco
central, sem divisão entre conservadorismo e reformismo, eu sou os
dois". É Emmanuel Macron, que se diz conservador reformista ou
reformador conservador. A ficção direita-esquerda está tão doente que
aquele que a representa a declara superada.
Aparentemente, Macron é apoiado por grande parte do capital dominante do
país. Dirigentes de grandes empresas são favoráveis a sua candidatura
porque sabem que terão paz com ele no poder.
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Fernando Eichenberg/Folhapress |
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O filósofo, romancista e dramaturgo Alain Badiou
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Como o senhor analisa a vitória de Donald Trump nos EUA?
É uma vitória que eu chamaria de niilista. É o preço pago pela
desindustrialização violenta dos EUA. As produções foram deslocadas para
a China, o Camboja... Exatamente como em certas regiões da França. A
primeira vitória de Trump ocorreu nas primárias republicanas, com um
discurso populista. Ele prometeu expulsar os mexicanos, criar empregos,
repatriar fábricas.
Na França, desempregados de áreas industriais foram do voto comunista ao voto na Frente Nacional.
A eleição de Trump indica que a desindustrialização, o puro
financiamento do capitalismo das grandes metrópoles, cria uma clientela
disponível para as hipóteses fascistas. Sobretudo porque nada está
previsto contra isso. Só há Le Pen e Trump para dizer essas coisas que,
afinal, eles não cumprirão.
Ninguém acredita que os EUA voltarão a ser o grande país industrial do
passado. Ou então será instalado um verdadeiro protecionismo, que
conduzirá à guerra. A eleição de Trump é um sinal de que há uma doença.
Vladimir Putin encarnou certa liderança nesse crescimento de forças populistas. Como o senhor vê isso?
Eu comparo a situação contemporânea ao momento de véspera da Primeira
Guerra Mundial. Havia duas grandes potências, a França e a Inglaterra,
que partilharam o mundo entre si. Havia um terceiro elemento, que estava
insatisfeito por não ter seu império colonial: a Alemanha. E havia a
Rússia, vasta potência com interesses na Europa central. A guerra
eclodiu pois não se encontrou solução equilibrada.
Hoje há uma bipolaridade crescente China-EUA. Há uma Europa em declínio.
E a Rússia, assim como em 1914, faz valer suas intenções com um Estado
autoritário que conta com o apoio da população.
Putin é um chefe de Estado nacionalista que busca vingança pelo
desmantelamento da União Soviética. Na minha opinião, ele encarna o
papel dos alemães na guerra de 1914.
Desta vez, temos uma partida de quatro jogadores (EUA, Europa, Rússia e
China) em uma combinação instável. Há a intervenção no conflito do
Oriente Médio, como antes de 1914 havia a intervenção nos Bálcãs. Não
sou muito otimista do que vai sair de tudo isso.
O sr. diz que a violência terrorista vem da destruição de três
importantes Estados do mundo árabe-muçulmano (Iraque, Líbia e Síria) e
da intervenção militar direta ou indireta dos ocidentais em países da
Ásia e da África.
Vem da destruição dos Estados na região e, nos países ocidentais, da
frustração e do niilismo de uma parte da juventude, representante da
terceira geração de imigrantes. Eles não se sentem verdadeiramente
franceses [ou europeus] nem integrados, há o desemprego.
E não se insiste o bastante no fato de que esses jovens se suicidam nos
atentados. Para ter jovens assim, é preciso que estejam em um
determinado estado de pulsão de morte e desesperança. E essa
desesperança não vem do islã. Eles estão desorientados no sentido mais
amplo. Algo semelhante ocorre quando se pergunta por que os operários do
norte votam em Le Pen.
O senhor diz que a resistência de hoje, por meio de manifestações,
protestos, petições, faz parte da "inexistência política". As
mobilizações no Cairo ou em Paris não seriam muito diferentes do Maio de
68 pela "linguagem pobre e sem unidade", em movimentos que se impõem
pela negação, e não pela afirmação de uma ideia. Houve o "Fora Mubarak",
no Egito, hoje temos "Fora Temer", no Brasil.
Primeiro, de um ponto de vista abstrato e geral, é melhor que existam
movimentos desse tipo do que não haver nada. Em segundo lugar, penso que
o que conta na política é a afirmação. É algo quase filosófico.
A negação sozinha é criadora? Não é completamente verdadeiro que a
destruição porta a construção. Claro que a negação é necessária, mas é a
afirmação que deve comandá-la, não o contrário.
Noto que, nesses movimentos, o elemento afirmativo é pobre. Não há ideia. Nuit Debout [protesto contra a
legislação trabalhista
no ano passado, em Paris] foi o último deles, e o mais medíocre se
comparado à praça Tahrir, aos movimentos na Tunísia ou aos protestos em
Hong Kong. Era muito palavrório.
A luta contra a nova legislação trabalhista também foi negativa, não
trazia nenhuma visão diferente do trabalho etc. Sem uma lógica
importante da afirmação, só sobram coisas precárias e derrotadas.
O que o senhor pensa das iniciativas do Podemos, na Espanha, e do Syriza, na Grécia?
O Syriza capitulou, e não acredito que vá se reerguer. O caso do Podemos
é mais complicado. Eles estão divididos. Uma parte deseja entrar no
governo, outra pensa que, se isso ocorrer, eles não permanecerão Podemos
por muito tempo. É um movimento simpático, mas não tenho muita
esperança neles.
Na sua análise, há 30 anos vivemos um "tempo desorientado", de
ilegibilidade do período precedente. Como é esta época de
contrarrevolução econômica, política e ideológica em que estamos,
segundo suas palavras?
Há provavelmente três aspectos. O primeiro é o fracasso e o fim das
iniciativas que visavam construir Estados sob bases completamente
diferentes do capitalismo. Houve a derrocada dos Estados que se
proclamavam socialistas, Rússia, China etc. É um elemento que encerra um
período histórico no qual se podia crer que outro período histórico
poderia surgir.
O segundo ponto é que o balanço desse fracasso foi deixado ao inimigo, à
crítica reacionária. Essa época não foi compreendida; foi condenada e
praticamente suprimida da história. O fracasso foi adicionado de uma
derrota ideológica. Isso levou a uma desmoralização do campo
revolucionário tal qual existia desde o século 19.
E a terceira razão é que o capitalismo acelerou sua transformação
expansiva, realmente se globalizou. E [o fez] consciente de que, não
tendo adversário, poderia retornar a sua antiga forma: o liberalismo.
Fala-se de neoliberalismo, mas há muito pouco de "neo". Houve uma nova
energia conquistadora.
O espectro do comunismo estava morto, não assombrava mais. Essa
desorientação é articulada a partir de uma derrota histórica, e a
expansão da visão liberal teve via livre e uma violência particular.
Nesse contexto, encontrar outro caminho, uma orientação estável, uma
força coletiva, tornou-se difícil, mas é o que é preciso fazer.
Como seria a "hipótese comunista" que o sr. defende, a invenção de uma modernidade não capitalista?
Se quisermos entender o problema do comunismo hoje, é preciso retraçar a sua história. São duas etapas bastante diferentes.
Houve a invenção da hipótese comunista, de sua criação, Marx e o
Manifesto do Partido Comunista, essencialmente no século 19. Era uma
ideia consolidada e que começava a se organizar em partidos.
A segunda etapa começa com a
Revolução Russa, de 1917.
Foi a primeira experimentação histórica da ideia e a primeira tentativa
de construir uma sociedade que não se basearia na propriedade privada.
Mas foi uma experimentação fracassada. Na minha opinião, porque sua
organização se fundiu ao Estado. A ideia comunista foi engolida e
devorada pelo poder.
Hoje, ou abandonamos a ideia, ou a fazemos entrar em sua terceira etapa. É uma escolha histórica. Eu proponho manter a ideia.
Qual seria a ideia?
O retorno aos princípios fundamentais do comunismo, ou seja, à ideia de
romper com a organização da sociedade em torno da propriedade privada e
de acabar com as modalidades de divisão do trabalho. Retornar também à
ideia de que a organização, qual seja ela, não se funde ao Estado.
Precisa ser uma mediação entre a população e o Estado. Sem isso, tem-se
uma construção estatal monstruosa.
É preciso sublinhar que o fracasso da experiência comunista não se deu por uma oposição, ela se decompôs em seu interior.
Qual seria a nova forma da organização adequada a esta nova etapa?
Sabemos que não será o partido leninista. Sinto, hoje, uma tentação de
retorno ao anarquismo –estamos de novo na discussão entre Marx e
Bakunin–, na ideia de que só importa o movimento.
Não devemos ceder a essa tentação, achando que se desvencilhando do
Estado tudo ficará bem, mas ter uma proposição nova e inventiva sobre a
organização moderna do comunismo. A fusão do partido com o Estado
representou o retorno a uma concepção tradicional do poder político. Se
quisermos liberar a política comunista desse fracasso, devemos inventar
uma forma de organização diferente da que é obcecada pela questão do
poder.
Como o sr. vê as tentativas de procurar vias alternativas dentro do
sistema capitalista, como produtores organizados em cooperativas?
Essas experiências podem originar ideias a serem integradas em um novo
comunismo. De certa forma, a ideia comunitária sempre acompanhou a
hipótese comunista, era a relação entre comunismo científico e utópico,
por exemplo. Sou a favor da circulação entre os dois. Mas são
experiências destinadas a permanecerem locais. Sair do sistema não
basta, em algum momento será necessário quebrá-lo.
Por um conjunto de razões. A primeira, e pela qual ele é muitas vezes
criticado, é porque fez a primeira crítica séria da democracia.
Se olharmos de perto, é uma crítica contemporânea. Ele explica que a
democracia é agradável, cada um faz o que quer e o que conta são os
desejos individuais e o dinheiro. E conclui que a democracia é onde se
pode viver sem ideias. Mas ele pensa que viver sem ideias não é bom. Eu
concordo: uma vida é mais feliz com ideias do que sem elas.
A segunda razão é por sua intuição de que viver com uma boa ideia
supunha o comunismo. Sim, ele reservou o comunismo aos dirigentes. Ele
paga o preço de viver na Antiguidade. Mas, no comunismo dos dirigentes,
não há propriedade privada, preocupa-se prioritariamente com o bem
comum. E chega até a dizer que é preciso a igualdade entre homens e
mulheres, o que é muito raro para a época.
Por fim, ele mostra que a chave é a afirmação, não a negação; e que a
afirmação circula pela discussão. Por isso deu à sua filosofia a forma
de diálogos. Ele mostra que, para partilhar a ideia afirmativa, a única
solução é encontrar as pessoas.
DECO FARKAS, 31, é artista visual e ilustrador
FERNANDO EICHENBERG, é jornalista em Paris e autor de "Entre Aspas: Vol. 2" (L&PM)