Até que ponto é solidária essa tal economia?
por João Bernardo
Economia Solidária é um nome bonito. É como
pessoas bondosas. Como pode alguém ser a favor de pessoas más! Ou ser contra a
beleza, ou contra o altruísmo! No entanto, se é um nome conveniente para marketing, é mau como conceito, porque é
ambíguo e não define rigorosamente o seu objectivo. Tentarei esclarecer um
pouco a questão.
A partir das décadas de 1960 e 1970, em vários
países tanto da área do capitalismo privado como da do capitalismo de Estado,
surgiram e desenvolveram-se fora das estruturas sindicais e políticas
tradicionais numerosos movimentos reivindicativos que deram lugar à ocupação de
empresas e à continuação da produção sob o controlo directo dos trabalhadores.
Se estudarmos estes movimentos, que estão relativamente bem documentados,
verificamos que em quase todos eles se manifestou desde cedo uma tendência para
a alteração das relações de trabalho, que em alguns casos pôde chegar muito
longe. As decisões colectivas e rotatividade de funções, com a consequente
diminuição das barreiras existentes entre a administração e a produção,
passaram nessas lutas para a ordem dia, em franco contraste com a prática até
então habitual no movimento operário, que se limitava a exigir a reformulação
das relações jurídicas, com a nacionalização das empresas, e, no âmbito global,
a tomada do Estado por um partido comunista ou socialista. Mas a incapacidade
manifestada repetidamente tanto pela social-democracia como pelo leninismo de
abolir as relações de exploração levou enfim os trabalhadores a compreenderem
que podem ocorrer grandes remodelações no plano político e no plano das
relações de propriedade e conservarem-se inalteradas as relações de trabalho. A
superação deste dilema constituiu a grande lição das lutas autonomistas
iniciadas na década de 1960 e continuadas hoje em novas experiências.
Outra coisa, muitíssimo diferente, é a
conversão de empresas falidas em cooperativas, onde a administração continua a
ser assegurada por especialistas e onde cabe aos trabalhadores, como sempre,
trabalhar. Convém recordar que foi a burocracia dos partidos social-democratas
alemão e belga, durante a época da Segunda Internacional, ao manter sob o seu
firme controlo a administração de numerosas e riquíssimas cooperativas, quem
suscitou entre os seus opositores as primeiras análises críticas da
burocratização do movimento operário e as primeiras definições teóricas da
existência de uma classe capitalista formada por gestores. E hoje, passados cem
anos, é a constituição de uma burocracia deste tipo, mas num nível económico
incomparavelmente mais medíocre, que visa o projecto de formar gestores de
terceira ou quarta ordem para se encarregarem de administrar empresas em vias
de falência. No plano puramente económico trata-se de uma forma dissimulada de
precarização da força de trabalho, introduzindo-se alguns paliativos destinados
a evitar o desemprego e a impedir que as consequências sociais do
neoliberalismo e do toyotismo atinjam um nível explosivo. Mas dois séculos de
luta anticapitalista ensinaram, pelo menos, que enquanto a direcção da
actividade económica estiver a cargo de especialistas continuará a existir a oposição
entre a classe capitalista dos gestores e a classe trabalhadora, com a
consequente extorsão de mais-valia.
De que lado se posiciona a Economia Solidária?
De que lado se posiciona cada uma das pessoas que participam no projecto e o
apoiam? Enquanto não ocorrer a necessária clarificação, a Economia Solidária
servirá somente para perpetuar confusões, e não é em águas turvas que pode
prosseguir a crítica teórica e prática ao capitalismo.
Ocupar empresas, aprender a administrá-las,
levar avante a remodelação das relações de trabalho – a importância destas
experiências é directamente social e política, não económica. Elas valem apenas
pelas novas relações sociais que começam a aplicar, ensinando os participantes
a gerirem eles mesmos a sua luta, o que é uma condição para mais tarde serem
capazes de enfrentar o colossal desafio de gerir toda a sociedade. E isso sim,
será uma nova economia, verdadeiramente solidária porque não dará lugar a
classes nem a exploração.
Mas pretender que empresas que só são capazes
de subsistir porque os seus trabalhadores aceitam apertar o cinto para não
ficarem no desemprego, e que só são capazes de produzir bens ou serviços de
inferior qualidade ou duvidoso interesse, consigam apesar disto triunfar das
empresas transnacionais num mercado cujas regras do jogo são ditadas única e
exclusivamente por essas empresas transnacionais – uma tal ideia só não é
delirante porque é demagógica e destina-se, uma vez mais, a manter os
trabalhadores enquadrados na ordem económica capitalista e sujeitos, como
sempre, à tutela dos especialistas, neste caso saídos das incubadoras como
pintainhos artificiais.
Quando os
trabalhadores dessas empresas começarem a dispensar os gestores que lhes
impingem e eles mesmos rodarem nas funções de administração, ao mesmo tempo que
forem alterando as relações de trabalho, será então que a Economia Solidária,
remetendo para segundo plano o seu carácter de economia, servirá para uma
verdadeira experiência social de solidariedade. Ou isto, ou continuar servindo
de caução moral das hierarquias exploradoras.
Novembro
de 2005